Conto: Uma Sophia


Deitada de costas pra cima, a doce Sophia viajava. Viajava de um modo diferente, onde seu espírito quase que saía de seu corpo para conhecer novos lugares. Era tão comum sonhar que ela, às vezes, nem percebia o que estava fazendo. Algumas vezes se perdia no tempo. Ficava pensando e imaginando tantas coisas que mal sabia quantas horas se passavam.


 [...]

Certo dia, ao sair para caminhar, Sophia perdeu-se em pensamentos e nos detalhes das coisas. Caminhou, caminhou, caminhou e sentiu-se anestesiada. Nada mais tocava nela e tinha algum impacto. Era como se tivesse perdido o sentido do tato. Estava de saco cheio.

Em casa ela mal conversava com os pais e o irmão mais velho. Aquilo tudo era um saco, pensava ela. Mas a verdade é que Sophia sempre se sentiu como um rascunho, cheio de erros e incompleto. A cada dia que passava ela tentava, apesar de seus medos, encontrar algo que a fizesse sentir completa.

Caminhar pelas ruas do seu bairro era desgastante para Sophia, pois via sempre pessoas completamente incompletas e se perguntava se alguma delas morria enquanto vive; se viver anestesiado e numa rotina as fazia feliz ou se as fazia morrer um pouco mais a cada dia, mas morrer de uma forma diferente; não da forma que todo ser humano é condicionado simplesmente por ser vivo.

Sophia, às vezes, pensava em terminar o ensino médio e fazer faculdade, trabalhar, se aposentar e definhar numa cadeira de asilo igual aos seus avós, abandonados pela família e pelo sistema, o que seria mais fácil. Mas não, para ela aquilo era muito torturante. Viver numa rotina condicionada a fazer o que os outros querem que ela faça é um sacrifício direto para o rei dinheiro. Sophia acreditava no amor e nas coisas simples da vida. Ela não queria ser agente opressor ou um alguém alienado.

Geralmente, seus dias passavam quase que em câmera lenta, movidos por um tom cinza, uma chuva densa e uma vontade constante de não ver ninguém. Sophia realmente se sentia cansada  mesmo sabendo que não fazia nada demais, assim como todas as outras pessoas. Ela só vivia e deixava os dias passarem; era tudo muito sistemático. Sistemático: talvez essa fosse a palavra que resumisse tudo. Dia. A. Dia. Rotina. Pessoas pensando apenas nelas mesmas. Olhar para a frente. Pro espelho. Para si. Tudo isso era desgastante para a doce Sophia. Seu modo de ver a vida era diferente, mas ninguém enxergava isso. Ninguém.

 [...]

Passou a frequentar lugares escuros e cheios de pessoas esquisitas. Aventurava-se nestes ambientes com vinte reais no bolso e uma vontade incessante de conhecer coisas novas. Havia ali, naquele lugar, pessoas com deformidades e aparência fora do que a tv sempre mostrou. Apresentaram à ela diversas novas formas de olhar o mundo, de falar e de ser. Sophia se permitiu à isso e se transformou: ia à escola com mais ânimo, vontade de mostrar que é diferente, de forma a influenciar seus amigos. Eles não precisavam continuar sendo marionetes, pessoas sem sonhos e perspectivas.

A querida cannabis não foi vilã para Sophia. Com ela, passou a participar mais das atividades da escola, das aulas de história, filosofia e sociologia, além de fundar o grêmio. Em dias como 'dia do índio' ou 'da consciência negra', Sophia sempre era quem corria atrás de realizar alguma atividade na escola. Por incrível que pareça isso foi mudando, aos poucos, a mente das pessoas que frequentavam aquele ambiente. Suas pequenas atitudes diárias se tornaram mudança na mente de seus colegas. Os professores então? - Ah, eu apoio Sophia! diziam.

 [...]

Deitada de costas pra cima a doce Sophia viajava. Viajava pra longe da rotina. Não era mais necessário ser salva por uma droga. Se bem que as pessoas têm uma visão errada sobre droga, pensava. Pra ela a droga era o sistema no qual viviam, pois ele sim deixava as pessoas imobilizadas, sem pensar, atrofiadas e só alguns conseguiam perpassar isto.

Sophia viu o que poucos viam, abriu os olhos para a luz, se permitiu e, desistir da vida não estava nos seus planos. "Mesmo que demore, mesmo que seja utópico, vou fazer parte da criação de um novo mundo e quando isso estiver feito não serei um rascunho feito à mão tremida."

Dia 7 de Setembro daquele mesmo ano Sophia foi morta pela polícia militar de São Paulo. Com seus assassinos não aconteceu nada, mas pelo menos, através dessa história, ela poderá ser lembrada.

Autora: Rafaela Campos.

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